Essa é a principal conclusão de um
relatório produzido pela Comissão sobre o Valor da Morte, um grupo de
especialistas que se reuniu para investigar o que significa morrer nos tempos
atuais.
O material, que recebeu o título
sugestivo de "Trazendo a morte de volta à vida", foi publicado recentemente no The Lancet, um dos principais periódicos científicos do mundo.
Logo nos primeiros parágrafos do
artigo, os autores apontam que "a história do morrer no século 21 é cheia
de paradoxos".
"Enquanto muitas pessoas recebem
tratamentos excessivos e fúteis nos hospitais, longe da família e da
comunidade, outra parcela da população não tem acesso a nenhum tipo de terapia,
nem para aliviar a dor, e morre de doenças previníveis", escrevem.
A BBC News Brasil conversou com a
médica inglesa Libby Sallnow, autora principal do relatório e especialista em
cuidados paliativos. Ela atua no serviço público de saúde do Reino Unido, no
St. Christopher Hospice, uma casa de cuidados para pacientes terminais, e nas
universidades de Bruxelas, na Bélgica, e College London, na Inglaterra.
Confira os principais trechos da
entrevista a seguir.
BBC News Brasil - No seu ponto de vista, o que é a morte?
Libby Sallnow - Nós costumamos falar da morte como um
evento. E, como mencionamos no artigo, a morte se tornou mais difícil de
acontecer, graças à tecnologia médica. Partes do corpo que antes falhavam, e
definiam esse fim, agora podem ser substituídas por máquinas ou por novos
órgãos em transplantes.
A tecnologia está ampliando os limites do que entendemos como morte.
Mas, de forma geral, a morte é vista como um ponto final, um evento que
acontece com todos.
BBC News Brasil - E o que é morrer?
Sallnow - Morrer é um processo cujo entendimento fica muito mais aberto,
especialmente na hora de definir o começo. Em termos médicos, falar que alguém
está morrendo envolve os últimos dias, ou as últimas horas. Mas os cuidados
paliativos podem começar a partir do diagnóstico de uma doença, ainda que a
pessoa esteja se sentindo bem naquele momento.
Para algumas pessoas, morrer pode durar muito tempo mais. Alguns até
acreditam que esse processo se inicia assim que nascemos. Afinal, a cada dia
que passa, estamos mais próximos de morrer.
Essa resposta então vai depender da perspectiva de cada um e se você
está analisando a questão do ponto de vista médico ou filosófico. Muitas
pessoas que conheci na minha prática clínica me disseram que estavam morrendo.
E isso não significava que a morte delas aconteceria nos próximos dias. Elas
apenas queriam dizer que o processo já havia começado.
Como mencionei mais acima, definir o que é morrer se tornou mais difícil
com o avanço da medicina. Antigamente, as pessoas estavam com uma doença ou
sofriam um acidente e era bem mais fácil de dizer se elas iam morrer ou se
recuperar.
Agora, com as doenças crônicas, como a demência e a insuficiência
cardíaca, falamos de um processo que pode levar anos. Então o foco nesses casos
é tentar viver bem, mesmo como uma enfermidade considerada terminal. Pode ser,
inclusive, que você acabe morrendo de outra coisa no caminho.
BBC News Brasil - É curioso como essa discussão ultrapassa as barreiras
da ciência. O cantor e compositor brasileiro Gilberto Gil, por exemplo, tem uma
música em que ele diz "não ter medo da morte, mas, sim, medo de
morrer"...
Sallnow - Isso é muito interessante de se pensar. A compreensão cultural do
que morrer significa é geralmente mais poderosa do que o conceito técnico da
medicina. As narrativas populares é que nos dão o contexto necessário para
entender isso. Inclusive, o famoso diretor americano Woody Allen tem uma frase
famosa a esse respeito: "Eu não tenho medo de morrer. Só não quero estar
lá quando acontecer".
Sim, a morte é amedrontadora e desconhecida. Nós perdemos o controle e
nos tornamos dependentes dos outros. Tudo isso vai contra a narrativa da nossa
época, em que independência, força, autonomia e controle do corpo e das
próprias decisões são tão importantes.
E isso me leva a uma outra discussão sobre o desconhecimento. Há uma
noção de que a morte costumava ser mais familiar para muitas comunidades e
culturas em todo o mundo. As pessoas estavam acostumadas com o que era morrer.
Na minha profissão, vejo pessoas morrendo o tempo todo. Mas, fora desse
contexto, especialmente nos países mais ricos, as pessoas não veem mais isso.
Nós morremos cada vez mais tarde, o que é ótimo. Trata-se de uma conquista da
medicina e da saúde pública.
Mas isso também significa que você pode ser muito mais velho quando vê a
primeira pessoa mais próxima morrer. Isso pode ser muito assustador e no geral
não se sabe muito bem quais são os sinais e como oferecer apoio nesse momento
final.
Existe um padrão do que acontece quando a pessoa está nas suas últimas
horas. Ocorre uma alteração no ritmo da respiração, há mudanças de fala e
outros detalhes muito comuns. Mas, se você nunca viu isso antes, essa cena pode
ser assustadora.
Isso faz com que os amigos e familiares enviem a pessoa que está
morrendo para o hospital, porque há uma ideia de que essa mudança de padrões do
corpo não é natural. E, claro, elas têm medo de não fazer a coisa certa pela
pessoa que amam. Há um temor de que o indivíduo está sofrendo e sem o apoio
necessário. O resultado disso é o aumento das mortes em hospitais. ]
Me parece que temos um enorme desafio pela frente. A morte se tornou tão
desconhecida e fora do radar que isso nos leva a um círculo vicioso. Nós
transferimos a responsabilidade de cuidar da pessoa para o sistema de saúde,
quando o fim da vida pode acontecer no conforto de casa em muitos casos.
De certa maneira, isso me lembra de toda a discussão sobre o parto. Há
uma medicalização do nascimento e também da morte. É claro que, em ambos os
casos, há um componente ligado à medicina, mas não podemos nos esquecer da
importância da família e dos relacionamentos próximos nesses momentos-chave.
Nosso objetivo com a comissão foi mostrar que há algo errado. E
precisamos, sim, de medicações, cuidados paliativos e suporte à saúde na hora
da morte. Mas isso não pode ser a única coisa que oferecemos.
Nós temos ótimos serviços de cuidados paliativos espalhados pelo mundo,
mas às vezes sinto que essa é a única resposta que damos à morte. É claro que o
indivíduo precisa desses cuidados, de remédios para a dor, de uma boa cama...
Mas tudo isso são apenas ferramentas, uma maneira de garantir que elas tenham
boas conversas com familiares e amigos, para que possam refletir sobre o
sentido da vida e se preparar para morrer. Essas sim são as coisas grandes, os
fatores existenciais e significativos.
BBC News Brasil - E como a senhora se interessou por esse assunto e
direcionou a carreira para essa área?
Sallnow - Quando eu era estudante de medicina, comecei a aprender sobre os
cuidados paliativos. E, para mim, ser médica vai muito além de prescrever
comprimidos. É claro que o tratamento é uma parte importante do meu trabalho,
mas eu estava mais interessada em entender como a comunidade, as relações e os
contatos são promotores de saúde.
Existem muitos estudos comprovando que os sistemas de saúde não
constroem vidas mais saudáveis sozinhos. O importante é o ambiente. Os
determinantes sociais de saúde são muito mais poderosos para determinar a forma
que vivemos e morremos.
Eu sempre vi a morte como um evento tão importante, pelo qual todos nós
vamos passar. É uma certeza universal. E uma coisa que percebi como voluntária
de um asilo era que ninguém falava sobre morrer. As pessoas tentavam esconder e
fugir do assunto, o que só torna todo o processo mais difícil para nós mesmos.
Ainda quando era estudante de medicina, fui para a Índia e tive contato
com um novo modelo sobre a morte, em que a comunidade estava no centro de tudo.
As pessoas estavam cientes do que é morrer e elas tiraram o controle de médicos
e enfermeiros. Não tinha nada parecido com isso no Reino Unido, onde só víamos
hospitais e casas de cuidado.
Eu voltei da Índia muito inspirada e com vontade de mudar a visão que
temos sobre o morrer. Há 20 anos, comecei a trabalhar com colegas de várias
partes do mundo para conhecer e desenvolver diferentes modelos para trazer a
morte de volta ao controle da comunidade.
BBC News Brasil - Além da Índia, a senhora lembra de outros modelos
interessantes de como lidar com a morte de forma mais saudável e sustentável?
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