Ou, nas palavras do Conselheiro de Segurança
Nacional dos EUA, Jake Sullivan, Biden e Lula irão se juntar "para
destacar o papel central e crítico que os trabalhadores desempenham na
construção de um país sustentável e democrático, um mundo equitativo e
pacífico".
Embora o teor do texto ainda não esteja finalizado
e tampouco seja público, ao menos quatro pessoas envolvidas em sua elaboração,
tanto do lado americano quanto do brasileiro, disseram à BBC News Brasil que os
detalhes do acordo importam menos diante do que representa a própria existência
da iniciativa.
Depois de uma série de solavancos, o lançamento
representa um certo resgate da relação entre os dois líderes.
"A sacada não está em algo escrito no documento,
está no fato de que Brasil e EUA estão liderando isso juntos, que Lula e Biden
construíram algo novo em conjunto", disse à BBC News Brasil um dos
auxiliares de Lula com envolvimento direto no assunto.
"Essa é realmente uma agenda positiva em que
os líderes estão trabalhando juntos, depois de muito ouvirmos falar sobre
fricções e dificuldades na relação entre eles", nota Alexander Main,
diretor de Política Internacional no Centro de Pesquisa Econômica e Política em
Washington, que recentemente acompanhou uma delegação de congressistas
americanos, entre eles a estrela da esquerda democrata Alexandria
Ocasio-Cortez, à Brasília para debater com autoridades brasileiras o plano.
O entusiasmo de Lula ficou evidente após uma
conversa telefônica entre ele e Biden, por telefone, em meados de agosto, na
qual ambos alinhavaram detalhes da ideia. "É a primeira vez que trato com
um presidente interessado nos trabalhadores", disse Lula na ocasião.
O assunto é tratado como uma das grandes
prioridades do presidente brasileiro em sua agenda de cinco dias em Nova York.
Tanto assim que, embora tenha recebido mais de 50 pedidos de bilaterais,
segundo fontes do Itamaraty, a única que já estava confirmada antes mesmo da
partida do brasileiro para os EUA era a agenda com Biden.
Além disso, Lula optou por não participar do
lançamento público de títulos sustentáveis brasileiros na Bolsa de Valores de
Nova York, nesta segunda (18/9), porque, de acordo com um diplomata brasileiro
ciente dos planos presidenciais, ele não queria que sua imagem na viagem
ficasse vinculada ao touro de Wall Street — "um símbolo da especulação
capitalista" —, e sim à agenda pró-trabalhador.
Em busca de parceiros privados para obras do PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento) em energia renovável — especialmente
eólica e solar no Nordeste — e de investidores americanos para o país, Lula
optou por participar de um jantar fechado à imprensa, organizado pelas
organizações patronais Fiesp e CNI, na noite de domingo, para o qual foram
convidados cerca de 40 dirigentes de grandes empresas e fundos, como a Chevron,
a Blackrock, o Citibank.
Solavancos
Embora prometesse uma sintonia fina, graças ao
apoio dos EUA à democracia brasileira e ao rápido reconhecimento da Casa Branca
à vitória eleitoral de Lula em 2022, o começo da relação entre ele e Biden foi
marcada por solavancos.
Em sua primeira visita a Washington, em fevereiro,
Lula não foi recebido para uma visita de Estado nem pode falar ao Congresso,
como desejava. A pouca ambição da agenda nos EUA foi contrastada com a pompa
com a qual Lula foi recebido na China, principal antagonista dos EUA
globalmente, pouco mais de um mês depois.
Além disso, os americanos anunciaram o ingresso no
Fundo Amazônia, mas com uma contribuição considerada tão baixa (US$ 50 milhões)
que os negociadores brasileiros pediram para que o valor fosse excluído da
declaração conjunta entre Brasil e EUA.
Semanas mais tarde, Biden anunciou a intenção de
remeter US$ 500 milhões ao fundo. A soma, porém, precisa ser aprovada no
Congresso e, sem maioria democrata na Câmara, parece cada vez menos provável
que isso aconteça, ao menos esse ano.
Os dois países também se estranharam no tema da
Guerra na Ucrânia. Na China, Lula disse que os EUA deveriam parar de
"incentivar a guerra", ao que o porta-voz do Conselho de Segurança
dos EUA, John Kirby, respondeu dizendo que o líder brasileiro "papagaiava
propaganda russa e chinesa". A escalada de tensão ganhou tal dimensão que
analistas dos dois lados começaram a cogitar "anti-americanismo" por
parte da política externa do Brasil.
Até que, segundo fontes do Brasil e dos EUA, Biden
lançou a ideia de que os dois líderes se juntassem em uma iniciativa focada no
trabalho. A primeira vez em que o tema foi tratado com o formato próximo ao
atual foi durante uma reunião de ambos às margens do encontro do G7, em maio,
em Hiroshima, no Japão.
"Quando Lula veio a Washington (em fevereiro),
seu grande pedido era ajuda para financiar o fundo Amazônia. A primeira
resposta de Biden foi meio fraca, depois ele ofereceu mais, mas o presidente
sabe que o Congresso (dos EUA) não vai aprovar isso agora. Então encontrou uma
forma de engajar Lula e trabalhar junto sem ter que pedir a anuência do
Congresso", diz Main.
Além de interromper a sucessão de constrangimentos
e tirar o foco das discordâncias entre os governos, a ideia valorizaria o
histórico político singular de Lula, como líder grevista no ABC paulista, e
reforçaria a ideia de que EUA e Brasil compartilham valores e princípios
fundamentais, tecla em que os americanos gostam de bater para diferenciar-se da
China.
"Lula é uma das maiores lideranças sindicais
do mundo e Biden é o auto-proclamado o presidente mais pró-trabalhador na história
dos EUA, há uma conjuntura especial que está propiciando esta iniciativa. É
claro que há essa confluência de personalidades dos dois presidentes, que é o
que permite que isso ocorra agora", diz à BBC News Brasil Stanley Gacek,
conselheiro do Sindicato Internacional dos Trabalhadores Comerciais e
Alimentares (UFCW, na sigla em inglês), que representa 1,3 milhões de
trabalhadores nos EUA e no Canadá.
Gacek conhece Lula desde os anos 1980, chegou a
visitá-lo na prisão na sede da Polícia Federal do Paraná e agora também
colaborou com a iniciativa.
Empurrão para reeleição
Para Biden, que enfrenta uma campanha para a
reeleição no ano que vem, reforçar a imagem de um líder defensor dos
trabalhadores pode ser fundamental para o sucesso eleitoral. Ainda mais em
estados-pêndulo como a Pensilvânia e Michigan, que votam ora republicano, ora
democrata e possuem importantes organizações sindicais.
"Ali, onde 2 mil votos podem fazer a
diferença, a capacidade dos sindicatos de aglutinar as pessoas e fazê-las votar
é central", diz Main.
O sindicalismo vive um ressurgimento nos EUA, e o patamar
de aprovação da população aos movimentos sindicais está acima de 70%, algo
alcançado pela última vez em 1965. Ciente disso, o presidente americano
relançou sua candidatura na sede da AFL-CIO, a maior central sindical do país e
uma histórica entusiasta e defensora de Lula.
O provável oponente de Biden será o republicano
Donald Trump, que tenta se associar aos trabalhadores a partir de uma agenda
nacionalista, que defenderia os interesses do proletariado americano ao manter
imigrantes fora do país e proteger a indústria nacional, privilegiando produtos
originários dos EUA (algo que, aliás, também é defendido por Biden).
No ano passado, um dos ideólogos de Trump, Steve
Bannon, afirmou à BBC News Brasil que a direita populista pretendia obter cada
vez mais entrada junto aos sindicatos. Auxiliares de Lula afirmam que também no
Brasil o presidente está preocupado com o avanço da direita sobre os
trabalhadores.
"Se querem consolidar a base e ter sucesso
eleitoral, Lula e Biden têm pela frente a missão de mostrar que seus governos
podem entregar mais aos trabalhadores em um momento em que o populismo de
direita apresenta uma retórica que têm apelo com os trabalhadores", diz
Main.
Afinal, o que haverá no documento?
Fontes envolvidas na negociação disseram à BBC News
Brasil que a premissa do documento é a definição de "trabalho
decente", da Organização Internacional do Trabalho, que define como tal o
trabalho produtivo e de qualidade e que garante a liberdade sindical, o direito
de negociação coletiva, promove a proteção social e elimina o trabalho forçado,
infantil e formas de discriminação.
Assim, estarão contemplados na iniciativa princípios
para a garantia de liberdade de associação com atuação sindical, respeito a
convenções e acordos coletivos atingidos pela categoria sobre negociações
individuais, salvaguardas a trabalhadores de aplicativos, como entregadores ou
motoristas, que não devem ser tratados como empreendedores ou microempresários
e sim como força de trabalho.
Há também a previsão de que o material trate dos
empregos da nova economia verde, um dos temas que mais preocupa os líderes
sindicais, já que a transição econômica do combustível fóssil para a redução de
emissão de carbono tende a eliminar mais postos de trabalho do que gera.
É o que se vê, por exemplo, na indústria
automobilística, na qual a fábrica de veículos elétricos demanda 40% menos
trabalhadores do que automóveis à combustão. Tanto Biden quanto Lula são
entusiastas da transição energética e das energias renováveis. Nos EUA, Biden
não é apoiado pelo maior sindicato de metalúrgicos do país, a United Auto
Workers (UAW), em parte pelo temor do que sua política para uma economia verde
pode causar de impacto para os trabalhadores do setor. Os metalúrgicos da UAW
estão neste momento em greve contra as três maiores montadoras do país, General
Motors, Ford e Stellantis.
Pressionada pelos movimentos grevistas, os maiores
neste verão desde a década de 1970, a Casa Branca tem dito que "ninguém
quer greve", mas que "Biden respeita o direito dos trabalhadores de
usarem suas possibilidades para obter um acordo coletivo".
O lançamento da coalizão deve colocar na mesma foto
pela primeira vez na história de Brasil e EUA os dois presidentes e líderes
sindicais americanos, como a AFL-CIO e a UFCW, quanto do Brasil, como da CUT.
Também estarão presentes o Ministro do Trabalho do Brasil, Luiz Marinho, além
de representantes do Conselho de Segurança Nacional dos EUA.
Brasil e EUA têm leis trabalhistas muito distintas.
Historicamente, o Brasil oferece muito mais garantias aos trabalhadores formais
do que os EUA. Aqueles com carteira assinada no país tem acesso a trinta dias
de férias remuneradas anuais, a licença médica de 15 dias seguidas sem perda
salarial, a licença maternidade de ao menos 4 meses e ao fundo de garantia ao
trabalhador por tempo de serviço acrescido de multa de 40% em caso de demissão
sem justa causa.
Nada disso é padronizado nos EUA: o trabalhador
precisa negociar diretamente com o patrão suas férias e dias de licença médica,
que com frequência são a mesma coisa e não superam os 15 dias anuais.
Licença-maternidade também não é assegurada nacionalmente e depende da política
do empregador e de alguma cobertura do governo local para existir. Não há
qualquer tipo de FGTS. O funcionário dispensado nada tem a receber pela
rescisão do contrato, que não precisa ser justificada.
Ainda assim, segundo os entusiastas da iniciativa,
Brasil e EUA têm muito a trocar em relação ao assunto, até porque no Brasil
existe uma enorme informalidade dos trabalhadores, que estariam ainda mais
desprotegidos do que a média dos americanos.
"Nós vamos construir isso. Para o Brasil é
importante primeiro pelo reconhecimento do presidente Lula como uma liderança
global", disse em Nova York o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que
negociou o texto.
Liderança global
É exatamente na condição de liderança global que
Lula pretende se apresentar no púlpito da Assembleia Geral da ONU.
Na próxima terça, 19/9, ele abrirá o evento pela
sétima vez, com um discurso no qual pretende reapresentar as credenciais do
Brasil aos 193 países que compõem a audiência da ONU.
Na fala do presidente estarão as pautas — e os
resultados já obtidos pelo governo — da proteção ambiental, a militância pelo
combate a todo tipo de desigualdade (seja econômica, climática ou de
representação em organismos multilaterais), e um chamado pela paz no mundo e
busca por saídas diplomáticas, com menção à Guerra da Ucrânia e a outros
conflitos na África e no Oriente Médio.
Existe a possibilidade, ainda, de que o adiado
encontro entre Lula e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky se concretize
em Nova York. Depois de um desencontro no Japão — em que cada lado culpou o
outro lado pelo desfecho — e de trocarem palavras ríspidas em público, Zelensky
teria sinalizado com interesse de sentar-se à mesa com o brasileiro que,
segundo o senador Jaques Wagner, líder do governo, ofereceu aos ucranianos duas
possibilidades de horário.
Diplomatas brasileiros vêem Zelensky em um momento de "maior baixa de popularidade" desde o início do conflito. Ainda sem resultados militares robustos na contra-ofensiva à Rússia, tendo tido que demitir seu ministro da Defesa e ouvido críticas públicas sobre sua estratégia militar dos americanos, os maiores financiadores do esforço bélico ucraniano, na perspectiva de diplomatas brasileiros, talvez agora Zelensky esteja mais interessado em saídas diplomáticas que Lula possa ajudar a costurar e menos em armas — que o Brasil já afirmou que não dará.
(Fonte: BBC)
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