Isso significa que pelo menos 1 em cada mil brasileiros estava vivendo nas ruas no ano passado, segundo relatório divulgado em setembro pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
Mas a população de rua total do Brasil deve ser
ainda maior, alerta Rita Cristina de Oliveira, secretária-executiva do MDHC –
ou a "número 2" da pasta liderada por Silvio de
Almeida.
"Pela condição mesmo de situação de rua – de
pessoas em grande parte indocumentadas –, a gente estima que esses números
estejam subnotificados", diz Oliveira, em entrevista à BBC News Brasil.
"Porque o CadÚnico pressupõe que as pessoas
tenham tido não só acesso aos serviços públicos da rede, mas que tenham também
documentos", afirma a defensora pública de carreira, que em 2021 também
fez parte da Comissão de Juristas Negros e Negras, instituída pela Câmara dos
Deputados.
"Como sabemos que boa parte dessa população
não tem acesso ao serviço de documentação ou teve documentação perdida,
extraviada, entendemos que o cadastro não lê toda essa população."
Contar devidamente essas pessoas, através de um
Censo específico, será uma das medidas do plano que o governo federal pretende
lançar até novembro para a população em situação de rua.
O pacote deve contar com uma série de eixos:
habitação; trabalho, renda e cidadania; combate à violência
institucional; assistência
social; produção de dados; saúde; e fortalecimento da rede de
atendimento são os principais deles, segundo a secretária-executiva.
Ainda não há, no entanto, orçamento definido para a
execução do conjunto de medidas.
"Como o Orçamento de 2024 não está fechado, as
pastas estão definindo seus recursos, mas obviamente, pelo tamanho do problema,
sabemos que vai ser um aporte robusto", diz Oliveira.
Entre as pastas que deverão estar envolvidas na
execução do plano, além do MDHC, estão Desenvolvimento e Assistência Social,
Família e Combate à Fome; Saúde; Trabalho e Emprego; Justiça; Cidades;
Educação; Gestão e Inovação em Serviços Públicos; e Cultura.
À BBC News Brasil, a secretária-executiva do
ministério falou ainda sobre o inquérito aberto pelo Ministério Público Federal
para investigar o envolvimento do Banco do Brasil na escravidão e preferiu não
comentar o impasse quanto à recriação da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidas Políticos.
Decisão do STF
O lançamento do plano atende à decisão do ministro Alexandre de Moraes, do
Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou em julho que
municípios, Estados e a União apresentem medidas específicas voltadas à
população em situação de rua. A decisão foi uma resposta a uma ação movida
pelos partidos Rede e PSOL e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Para o governo federal, o STF deu 120 dias para a
apresentação de um plano para a "efetiva implementação" da Política
Nacional para a População de Rua, criada em 2009.
Esse prazo vence em 24 de novembro mas, segundo a
secretária-executiva do MDHC, a intenção do governo é lançar seu pacote antes
disso, embora ainda não haja uma data definida.
"Uma data precisamente não tem, porque a ideia
é que [o plano] seja apresentado pelo próprio presidente Lula. Então vai
depender da agenda do presidente. Mas obviamente vai ser dentro do prazo e a
ideia que seja até antes", diz Oliveira.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou
por cirurgias de quadril e pálpebra em 29 de setembro e deve ficar três semanas
trabalhando na residência oficial do Palácio do Alvorada.
O que vem por aí
Segundo a secretária-executiva do MDHC, a habitação
deve ser o eixo principal do pacote a ser anunciado pelo governo.
"É o direito essencial que vai garantir todos
os outros direitos para enfrentar o problema das pessoas da situação de
rua", diz Oliveira.
Nessa área, o governo planeja ampliar a oferta de
locação social, com a disponibilização de moradias para aluguel a preços
subsidiados.
Também pretende criar cotas do programa Minha Casa,
Minha Vida para pessoas em situação de rua.
E oferecer uma modalidade de aluguel social
assistida, acompanhada de políticas de cidadania e saúde.
Essa vertente será voltada para pessoas "com
perfil crônico de rua", diz a representante do MDHC, que são aquelas que
moram nas ruas há mais tempo e muitas vezes sofrem de problemas de saúde
mental, associados ao abuso de substâncias como álcool e drogas.
O modelo é inspirado na metodologia "Housing
First" (Moradia Primeiro), adotada por diversos países para atender
pessoas em situação de rua.
No Brasil, municípios como Curitiba e São Paulo já
realizaram políticas inspiradas nesta estratégia.
No eixo de emprego e renda, o governo planeja fortalecer iniciativas de cooperativismo; fechar acordos de cooperação com grandes empregadores para promover acesso a vagas de emprego para a população de rua; e oferecer capacitação e qualificação profissional em parceria com federações e universidades, enumera a secretária-executiva.
"São esses os exemplos [de políticas contidas
no plano] que eu posso dar nesse momento", diz Oliveira.
"Obviamente, existe um compromisso nosso de
que o próprio presidente ou ministro [Silvio Almeida] anunciem as ações assim
que o plano for fechado."
Quantas pessoas vivem em situação de rua no Brasil?
A secretária-executiva antecipa, porém, que deve
ser lançado nos próximos dias um decreto instituindo o grupo de trabalho que
vai definir a metodologia do Censo da população de rua.
A ideia é fazer ainda esse ano um pré-teste da
coleta de dados e realizar os primeiros pilotos no primeiro semestre de 2024.
Só então será definida uma data para o início do Censo.
O IBGE (Instituto Brasileiro de geografia e
Estatística) realizou em 2022 – com dois anos de atraso, devido à pandemia e a
cortes de verba – seu Censo Demográfico.
A pesquisa contou 203 milhões de brasileiros, mas, como a coleta contempla apenas os domicílios, as pessoas em situação de rua não são incluídas nessa contagem.
Enquanto não existam dados censitários nacionais
sobre essa população, o governo utiliza para elaboração de seu plano
estimativas preliminares.
Além do diagnóstico lançado em setembro pelo MDHC
com base nos dados do Cadastro Único, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) publicou em dezembro de 2022 um estudo em que estimou a população em
situação de rua no Brasil em 281,5 mil pessoas, a partir de dados oficiais
informados por gestões municipais.
Pela estimativa do Ipea, o número de pessoas
vivendo nas ruas mais do que triplicou no Brasil em uma década – eram 90,5 mil
pessoas nessa situação em 2012, nas contas do instituto.
Essa "explosão" no número de pessoas
vivendo nas ruas é muito superior ao crescimento vegetativo da população, que
foi de apenas 6,5% entre 2010 e 2022, segundo o Censo do IBGE.
Principais desafios
Nesse cenário, o principal desafio para a execução
do plano do governo federal para a população de rua é a articulação entre
União, Estados e municípios, avalia a secretária-executiva do MDHC.
"Todos nós sabemos que as ações só vão poder
ser implementadas plenamente a partir do diálogo com os entes nacionais,
especialmente os municípios", diz Oliveira. "Então esse é um desafio,
mas nós estamos confiantes que todos entenderam, inclusive a partir da decisão
do Supremo."
A representante do ministério afirma que esse
dialogo deverá ser feito "independente das diferenças partidárias
ideológicas".
O diagnóstico divulgado em setembro com base em
dados do CadÚnico revelou, por exemplo, que 40% da população de rua total do
Brasil se encontra no Estado de São Paulo, atualmente governado por Tarcísio de
Freitas (Republicanos), ex-ministro do governo Jair Bolsonaro (PL).
E mais da metade desse contingente está na capital
paulista, cuja prefeitura tem à frente o emedebista Ricardo Nunes.
Segundo Oliveira, apesar do tamanho da população
paulista em situação de rua, não deve haver políticas específicas para o Estado
ou para a Cracolândia paulistana.
Isso porque as políticas não estão sendo pensadas
para espaços ou governos específicos, mas considerando os problemas da
população em situação de rua, diz ela.
"É óbvio que São Paulo, pela concentração de
pessoas em situação de rua, tem a nossa atenção", afirma a
secretária-executiva.
"Se temos lá um número relevante de pessoas em
situação de rua com uma problemática aguda de uso abusivo de álcool e droga, a
política que estamos pensando para pessoas em situação de rua com uso abusivo
de álcool e drogas vai ser oferecida para São Paulo, assim como vai ser
oferecida para todas as capitais que têm o mesmo problema", acrescenta.
Segundo a secretária, o plano do governo deverá ser norteado por dados, e seu cumprimento será avaliado por metas e indicadores, que serão disponibilizados numa plataforma pública, o Observatório Nacional de Direitos Humanos (Observa DH), que está para ser lançado.
"Obviamente, a redução da população em
situação de rua é um indicador fundamental da eficácia do plano", antecipa
Oliveira.
Ela avalia, porém, que ainda é cedo para falar em
números.
Reparação histórica no BB e mortos e desparecidos
políticos
A BBC News Brasil também perguntou a Rita Cristina
de Oliveira sobre outros temas relevantes que estão sendo tocados pelo
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Com relação ao inquérito aberto pelo Ministério
Público Federal (MPF) para investigar o envolvimento do Banco do Brasil (BB) na
escravidão e no tráfico de escravizados no século 19, a secretária reafirma que
a pasta deve participar de reunião sobre o tema no dia 27 de outubro, junto ao
MPF, BB, Ministério da Igualdade Racial e ao grupo de historiadores que propôs
a ação.
"O ministério tem, desde o início dessa gestão, uma preocupação com a memória e verdade, e também medidas de reparação histórica em relação à escravidão e ao tráfico transatlântico", diz.
"Tanto que, ineditamente, criou uma
coordenação geral específica para tratar desse tema."
A Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a
Escravidão e o Tráfico Transatlântico, integrada ao MDHC, é liderada pela
história da África Fernanda Thomaz desde março. A coordenadoria tem se dedicado
a temas como a preservação e memória do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro,
principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas.
Questionada se a política de reparação histórica em
gestão na pasta poderá eventualmente incluir compensação financeira para
descendentes de escravizados – como estudado, por exemplo, pelo Estado da
Califórnia, nos EUA – a secretária descarta essa possibilidade no momento atual.
"Reparação financeira não está na linha de avaliação agora, até porque isso dependeria de alterações normativas que não estão nem no nosso alcance", diz Oliveira.
"O passivo que nós temos em relação à
escravidão e ao tráfico [de escravizados] é trazer à tona esses
registros", avalia a "número 2" dos Direitos Humanos e
Cidadania.
"O que a gente ainda não fez enquanto país é
trazer essa história, com todos os seus atores, à tona para uma discussão
importante que a sociedade precisa fazer em relação ao tamanho dessa reparação.
Então é isso que vamos fazer como política. Vamos trazer à tona essa
história", afirma.
"Agora, o alcance dessa reparação é um debate
que ainda vai ser colocado."
Quanto à recriação da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidas Políticos (extinta em dezembro de 2022, no apagar das
luzes da gestão Bolsonaro) haveria um impasse, segundo reportado pela imprensa
nas últimas semanas, com base em informações de bastidores.
Ativistas de direitos humanos e familiares de
mortos e desaparecidos pressionam para que o governo recrie a comissão até 25
de outubro, data que marca o assassinato do então diretor de jornalismo da TV
Cultura, Vladimir Herzog.
Mas o Planalto teme desgaste com os militares.
Questionada sobre o impasse, a secretária-executiva
preferiu não se manifestar.
"Sobre esse tema, eu não tenho nenhuma
manifestação a dar, porque essa é uma questão que está sob avaliação atualmente
da Presidência da República e da Casa Civil. Então o que tinha que ser feito
pelo ministério já foi feito e não tenho mais nenhum comentário a fazer sobre
isso."
(Fonte: BBC)
Nenhum comentário:
Postar um comentário