"A pessoa não necessariamente quer emagrecer,
mas parece muitas vezes que eles querem ser emagrecidos, quase com uma varinha
de condão", diz a autora de Por que não consigo emagrecer? Um
olhar sobre corpo, comportamento e alimentação (Ed. Fontanar, 2022).
A nutricionista alerta que "saúde e
emagrecimento podem estar aliados, mas dependendo de como é feito o processo de
emagrecimento, ele pode ser até motivo de doença".
Ela afirma que problemas na relação com corpo têm
suas raízes na "valorização exagerada da magreza" e na percepção —
errada — de que magreza e saúde são sinônimos.
Nesse contexto, a valorização da magreza intensa —
e os consequentes elogios feitos quando alguém perde peso — ajuda a explicar
por que as pessoas demoram a identificar que amigos ou familiares têm
transtornos alimentares.
"Na dúvida, é melhor não falar sobre o corpo
do outro, porque você não sabe a história daquela pessoa", diz Coelho, que
é especialista em transtornos alimentares.
O que dificulta o processo de emagrecimento — e
quais são os pilares que realmente podem ajudar nesse processo?
Leia a seguir os principais trechos da entrevista
de Desire Coelho à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil — Neste momento, os termos
relativos a emagrecimento com maior aumento de pesquisas no Google são: "o
que comer pós-treino para emagrecer", "suplemento para emagrecer
rápido", "remédios emagrecer sem receita" e "batata doce
ajuda a emagrecer" são os que tiveram maior aumento recentemente. Com sua
experiência na clínica e na academia, o que essas buscas indicam sobre as
formas que buscamos para emagrecer?
Desire Coelho — Ressoa sempre que deve existir um atalho.
Qual é o atalho que eu preciso para conseguir emagrecer? Muitas vezes, algumas
dessas perguntas nem são um atalho, são uma pílula mágica.
A pessoa não necessariamente quer emagrecer, mas
parece muitas vezes que eles querem ser emagrecidos, quase com uma varinha de
condão. Não querem necessariamente passar pelo processo de mudança. Querem que
alguma coisa aconteça e aí entendam qual é o grande culpado, o grande vilão, e
o que eles têm que fazer que eles não estavam fazendo antes e, a partir daí,
mudar a história de vida, a trajetória, e não se preocupar mais com isso. Vejo
muito uma terceirização da culpa das pessoas, uma terceirização até da
responsabilização do processo de emagrecimento.
E sempre procurando uma pílula mágica, o que vai
ser a guinada, o que vai ser essa coisa que vai dar a mudança e o resultado com
essas pessoas esperam. E isso acontece muito por uma expectativa irrealista do
que é o processo de emagrecimento mesmo, o que é saúde. Então hoje em dia
quando as pessoas pensam em nutrição, pensam direto em emagrecimento, e não
necessariamente em performance, não necessariamente em saúde. Então saúde e
emagrecimento podem estar aliados, mas dependendo de como é feito o processo de
emagrecimento, ele pode ser até motivo de doença.
Isso não é culpa do indivíduo necessariamente. É de
todo um meio que a gente está envolvido, em que a valorização da magreza é
exagerada e existe muito uma percepção de que saúde é igual à magreza — o que
também não é verdadeiro.
BBC News Brasil — No livro Por que não
consigo emagrecer?, você fala sobre as barreiras que atrapalham esse
processo. Quais são as principais?
Desire Coelho — Primeiro que as pessoas entendem o processo de
emagrecimento como uma coisa que tem começo, meio e fim — e ele não tem começo,
meio e fim. Mais do que a pessoa pensar qual o corpo que quer ter, o peso que
quer ter — eu não gosto de falar em peso, mas é muito o referencial que as
pessoas têm —, as pessoas têm que pensar qual é o estilo de vida que querem.
Aí, sim, a gente vai conseguir entender dentro dos
valores dela, da realidade dela, aonde ela consegue chegar. E outra coisa
importante é que as pessoas entendem o processo de emagrecimento como uma coisa
linear — e não é. O processo de emagrecimento tem altos e baixos, e a questão é
o quanto a pessoa consegue aprender com esses momentos — o que funciona para
ela, o que não funciona. As pessoas querem muito uma única fórmula mágica, mas
não vai existir — o motivo pelo qual uma pessoa engorda é diferente do motivo
pelo qual outra pessoa engorda.
Se somos pessoas tão diferentes, não vai existir
uma única resposta para o processo de emagrecimento. Então é entender (a
resposta) dentro da realidade de cada pessoa – genética, fatores sociais,
história de vida e os valores diferentes que a comida tem para cada um de nós.
Entender esse processo de emagrecimento como altos
e baixos e quanto a pessoa conseguir retomar o processo, continuar no processo,
é o que vai determinar muito do sucesso dela no longo prazo.
BBC News Brasil — Você mencionou como a história de
vida de uma pessoa pode impactar o significado da comida para ela. Pode dar um
exemplo?
Desire Coelho — Atendi uma paciente que tinha engordado
muito, começou a ter episódios de compulsão alimentar com doce. Conversamos
sobre histórico de vida e ela falou que foi numa nutricionista e, na época, e
ela comia sempre um bombom depois do almoço. A nutricionista falou: "não,
o açúcar não faz bem, vamos tirar esse bombom, não é para comer mais". Aí
ela ficava todo dia tentando não comer.
Depois de uma semana sem comer nada de doce, ela se
pegou comprando uma caixa de bombom e comendo inteira. E aí ela começou a
desenvolver episódios de compulsão alimentar, porque ela entendia que o que ela
estava fazendo era errado e aquilo gerava uma série de reações, mas tudo por
conta de uma restrição imposta por uma pessoa.
Então uma pessoa que nunca teve esse tipo de viés,
uma pessoa que nunca teve esse tipo de interação, tem uma relação com doce
totalmente diferente.
Entender a história de vida e como isso interfere
nas nossas relações com a comida e com o nosso corpo é muito importante.
BBC News Brasil — Além dos fatores que dependem do
indivíduo, quais são aqueles essenciais para todo mundo?
Desire Coelho — Tem alguns alicerces:
O sono, que as pessoas estão cada vez mais
conscientes, mas elas ainda não têm ideia do quanto ele impacta diretamente na
nossa capacidade de escolher comida, por exemplo. Dormir bem — quantidade e
qualidade é fundamental. Não existe emagrecimento sustentável com sono ruim. A
privação de sono aumenta a fome, diminui saciedade e aumenta a vontade de
comer. Além disso, deixa a gente mais indisposto, e a gente se movimenta menos,
então a gente fica mais sedentário. É um combo muito perigoso.
A atividade física. Podemos pensar na atividade
física e no exercício — tem o treino estruturado, mas atividade física são os
movimentos que a gente faz no nosso dia. O que acontece é que algumas pessoas,
por mais que tenham carga de treino adequada, no resto do dia tem comportamento
completamente sedentário. O que acontece é que um acaba compensando o outro.
Isso é algo que a ciência ainda está tentando entender. Então, às vezes a
pessoa aumenta o gasto dela na atividade física, só que o comportamento
sedentário faz com que aquele aumento não seja pronunciado como poderia ser.
(...) As pessoas têm respostas metabólicas diferentes e isso é determinado
geneticamente até — a facilidade ou dificuldade (de poupar ou gastar energia).
O terceiro pilar é a alimentação. Tem algumas
coisas que a gente já sabe que são fundamentais para alimentação: deve ser
muito rica em alimentos in natura — ou seja, salada, legumes, comer. A gente tá
falando de arroz, feijão, grão de bico, lentilha. É aquela história de
"descasque mais e desembale menos". E a gente respeitar nossos sinais
de fome, de saciedade, entender quais são os alimentos desafiadores. E as
proteínas têm um papel fundamental. São coisas que a gente já sabe.
E o último pilar fundamental é a parte da regulação
emocional. Hoje em dia, o que as pessoas mais usam para fazer a regulação
emocional não é sair para caminhar ou chorar. As pessoas comem. Às vezes, a
pessoa sente algo que não quer sentir, aí come para aliviar. Entender quais são
as válvulas de escape que cada pessoa usa e como a gente consegue ressignificar
essas válvulas de escape é fundamental também em um processo de saúde e emagrecimento.
BBC News Brasil — Uma prática que se popularizou
foi o jejum intermitente. Funciona?
Desire Coelho — O jejum intermitente, assim como outras
dietas, funciona para uma parcela da população. Vai ter gente que vai falar
"nossa, eu já fazia jejum intermitente e nem sabia que tinha esse
nome", porque a pessoa muitas vezes janta não muito tarde, não toma café porque
não tem fome, e aí ela vai comer na hora do almoço, e aí ela ficou aí umas 14,
16 horas em jejum.
O que é interessante do jejum é que, quando a gente
pensa no aspecto evolutivo, faz muito sentido. Se a gente pensar nos nossos
antepassados que viveram 100 mil anos atrás, 200 mil anos atrás, eles não
faziam cinco refeições por dia todos os dias. Era normal ter uma oscilação. E
hoje estamos numa sociedade em que não é incomum eu encontrar paciente que faz
sete refeições por dia. Metabolicamente, o corpo da pessoa não para de
processar comida, é um desgaste.
Uma coisa que a ciência tem mostrado que é
interessante é, mais do que ficar pensando em estratégia de jejum intermitente,
pensar no jejum da noite, que as pessoas não estão fazendo direito. Tem que dar
pelo menos uma janela de 11, 12 horas que você não se alimenta. Isso não se
caracteriza como jejum intermitente, que seria uma janela a partir de 14, 16
horas. É só o jejum noturno — se a minha última refeição foi 19h, vou comer 7h
da manhã.
BBC News Brasil - As pessoas parecem cada vez estar
falando mais em tomar proteína, vitaminas, suplementos… Quanto isso é a ciência
avançando e trazendo soluções interessantes e quanto tem a ver com essa busca
de uma solução mágica, como você citou?
Desire Coelho — Meio a meio. Tem muito uma indústria sempre
na frente da ciência, já querendo vender a necessidade de consumo. E a grande
questão é que ilude muito as pessoas porque existe um fundo científico que faz
sentido, mas não daquele jeito que está sendo propagado.
Por exemplo, falando do ômega 3: a gente sabe que
pessoas que têm uma alimentação mais rica em peixes e em alimentos fontes de
ômega 3, como castanhas, sementes, são pessoas que têm o perfil
cardiometabólico melhor, mas elas comem mais na alimentação. A evidência sobre
a suplementação de ômega 3,
que é o nutriente isolado, ainda é fraca. Para algumas coisas, ela já existe.
No Brasil, a gente entende que é um nutriente que
muitas vezes está deficiente mesmo na alimentação das pessoas. Aí fica a
pergunta: o melhor jeito é suplementar ou tentar aumentar os alimentos fontes,
né? Obviamente seria aumentar os alimentos fontes, porque quando a gente fala
da matriz alimentar do alimento em si, ele não tem só ômega 3, ele tem vários
outros compostos que provavelmente são benéficos também.
BBC News Brasil — E a proteína?
Desire Coelho — Ela é muito importante. E quando a gente vai
ver a população em geral, tem alguns fatores são fundamentais. Quem quer
consumir proteína é quem não precisa de proteína, que são os jovens, abaixo de
35, 40 anos, que adoram tomar um shake de proteína. Mas via de regra do corpo
deles está ótimo para sintetizar proteína.
Quem precisa de proteína são as pessoas com 40 anos
ou mais, que precisariam suplementar proteína porque o corpo começa a ficar
resistente ao ganho de massa muscular e começa a perder massa muscular.
Então elas precisam ser ativas e consumir
proteínas. E também podemos discutir se o melhor modo é através de bebidas
proteicas, cheias de aditivos, como adoçantes, emulsificantes. Os suplementos
são uma saída, mas tem que se encontrar o jeito certo de fazer isso.
BBC News Brasil - Também temos visto aumentar o uso
de medicamentos contra a obesidade…
Desire Coelho - Meu referencial é sempre querer repelir essas
coisas de primeira, porque já houve vários medicamentos que foram ruins, só
trouxeram resultados desastrosos, não cumprem o que prometem, com vários
efeitos colaterais.
Mas a verdade é que esse medicamentos novos, os
análogos de GLP-1, são muito interessantes, muito bons. Mas está havendo uma
banalização do uso, como pessoas que querem perder três quilinhos utilizando
isso, e ele tem muitos efeitos colaterais.
É uma ciência muito nova, mas a capacidade que eles
têm de resultado é algo que não tem nada parecido. Mas esses medicamentos novos
não vão ser bala de prata — se as pessoas não mudam os contextos, o estilo de
vida, quando a pessoa tira (o medicamento), a remissão é grande também.
BBC News Brasil - A sua experiência é grande tanto
na área de esportes quanto de transtornos alimentares. Nem sempre conectamos
essas coisas. Quão ligadas elas estão?
Desire Coelho - Totalmente conectadas. A área esportiva, dependendo
inclusive das modalidades, têm os maiores índices de transtornos alimentares. A
gente pensa sempre em esporte como saúde, mas quando a gente pensa em saúde,
hoje em dia, não é só isso.
O esporte hoje é visto muito com uma coisa de fundo
estético — como vou conseguir tal barriga, tal o braço —, e outra coisa é que,
quando a gente pensa em alto rendimento, existem muitas outras questões
relativas a corpo: manter um determinado peso corporal, uma determinada forma
corporal, tem que conseguir chegar nesse corpo nesse peso para aquela
competição...
BBC News Brasil — Falando em esporte amador, tenho
a impressão de que as mulheres, décadas atrás, faziam esporte amador com foco
na estética. Não era difundida a ideia, por exemplo, de fazer uma natação para
ajudar também na saúde mental, correr para tirar um tempo para você. Até hoje,
a gente ainda busca atividade física como uma forma de emagrecer ou entendemos
que é muito mais do que isso?
Desire Coelho - Homem entende como bem-estar. Homem sempre teve
atividade física muito embutida na história de crescimento dele. O menino está
jogando futebol com os amigos, jogando basquete com os amigos, e a menina está
brincando de boneca, de casinha.
Quando a gente vai para adolescência, os meninos
estão novamente se matando lá numa quadra de esporte e as meninas assistindo
todas arrumadinhas. Isso vai reverberando em diferentes fases da vida e uma
grande briga que eu tenho e que eu falo para as mulheres: por que você só marca
de tomar café? Por que não marca com sua amiga de fazer caminhada, pedalar,
jogar um vôlei? Caminha e depois vai tomar um café.
BBC News Brasil — Sobre os distúrbios alimentares,
como a pessoa pode identificar que chegou em um ponto preocupante ou como
podemos identificar que alguém próximo chegou nesse lugar?
Desire Coelho — O problema dos distúrbios e dos
comportamentos transtornados é que muitos deles são valorizados pela nossa
sociedade. Então é difícil para a família perceber o quanto está indo de uma
preocupação com saúde e passando por um aspecto mais doentio. É uma linha muito
tênue.
Muitas vezes essa pessoa começa falando "Ah,
eu vou cortar açúcar e farinha branca". E a resposta é: "que legal,
está cuidando da saúde". Depois o que acontece, muitas vezes, dependendo
do tipo de restrição que ela faz, ela começa a perder peso. E as pessoas
elogiam. Acabam motivando a continuar nesse processo. E a pessoa começa a
querer cortar mais e mais e mais e mais.
O que acontece é que a família ou as pessoas
próximas só vão perceber esse adoecimento quando essa pessoa começa a ficar
magra demais, só que muitas vezes já tá no aspecto totalmente doentio.
Então quando você percebe que a pessoa só fala de
comida, só pensa em atividade física, em gasto calórico, que grande parte da
vida da pessoa é voltada para esse assunto, já tem uma coisa muito errada aí.
A menos que seja um nutricionista, que trabalha com
comida o dia inteiro — e mesmo assim é importante dizer que nutricionista é um
fator de risco, muitas pessoas com transtorno alimentar procuram a faculdade
para tentar entender melhor a sua doença, o que é muito perigoso.
Tem um monte de profissional que lida com corpo e
emagrecimento que tem transtorno. E se essa pessoa não faz um bom trabalho
interno, de autocuidado, de autorreflexão, ela vai passando esse tipo de regra
para todo mundo.
As pessoas conseguem perceber que a pessoa só fala
disso, são pessoas que de repente param de comer — sempre dão um motivo para
não comer, então você não vê essa pessoa se relacionando com a comida. Tem
alguns perdendo peso de maneira contínua, muitas vezes passam até a usar roupa
larga para as pessoas não perceberem quão magra ela está.
Se você tiver proximidade com essa pessoa, é bom
propor uma conversa. É muito valorizada a magreza intensa hoje em dia, mas
magreza não é sinônimo de saúde.
Uma perda de peso nem sempre é conseguida por meios
saudáveis. E a pessoa é muito elogiada quando ela perde peso. Por isso que, na
dúvida, é melhor não falar sobre o corpo do outro, porque você não sabe a
história daquela pessoa.
(BBC)
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